vestido

O

(Ora bem, esclarecendo e realçando, aquela porra ali em cima é uma bolinha vermelha, considerem-se avisados!)

Naquela noite, enquanto passeávamos no jardim, ela usava um vestido de alças, um em que, de vez em quando uma delas escorregava pelo ombro, revelando a parte de cima do seio exposto. Um desses vestidos que a cada passo descobria e encobria uma das muitas formas arredondadas do seu corpo. Era um desses vestidos de tecido leve, esvoaçante, que imaginei a cair a direito, numa massagem suave até atingir os seus pés num rolo.
Entre o canteiro de dálias e o muro alto de pedra, estava uma colorida cama de rede. Sentei-me um pouco, tentando acalmar o bombear de sangue demasiado rápido pelo meu corpo. Permitia o movimento de vai e vem, enquanto fixava as flores, na esperança da minha imaginação parar de me presentear com a visão das suas roupas a esfumarem-se no ar, revelando a pele dourada, as coxas fartas…
Ela havia desaparecido há uns minutos, quando comecei a sentir que o bafo quente da noite, me permitia refrear um pouco a tensão. Foi com um salto que reagi áquele jacto inesperado. Olhei em volta, nada… apenas os aspersores debitando água.
Passados uns instantes observei-a aproximando-se de mim, de forma lenta, desconcertante. O vestido que antes esvoaçava ao ar encontrava-se agora colado sobre a pele. Acentuando as pernas longas, o peito redondo, firme, de bicos salientes.
O fogo que me percorreu o corpo, nunca antes o havia experimentado, não daquela forma… disparando todos os meus alarmes.
Num movimento rápido tomei-a nos braços. Mordisquei-lhe os lábios, o peito… primeiro sobre o tecido molhado, sugando o suor e a água, depois, mais tarde, sobre o tapete de relva senti-lhe o sabor da pele. Palmilhei cada centímetro do seu corpo… e o urro deu-se quando finalmente senti a ponta dos seus dedos a descobrir o meu sexo, molhado, abrindo caminho para a sua língua viperina que entraria dentro de mim…

Mais tarde, muito mais tarde, deitada ao lado daquele homem peludo e desengonçado com quem me casei, sonhei com ela…

máscara

Era um fim de tarde, duma tarde como tantas outras. Apenas mais um fim de dia, de fim de verão. A mesa de madeira ressequida pelo sol, contorcia-se a cada movimento nosso, dando vida ao desassossego. Os meus olhos, em fuga, deslizavam pelo horizonte para o lugar onde o mar beijava o céu numa caricia envergonhada, pintada de vermelho.
Escutei-o fingindo não me perder a cada movimento dos seus lábios, a cada sorriso e engoli os suspiros, no momento exacto em que se preparavam para saltar da minha boca. Rimos ao sabor do café, gargalhadas levadas na brisa, ficando em mim apenas retratos das suas expressões. No canto dos seus olhos despontavam as primeiras rugas, dando sentido ao cinzento nos fios de cabelo que nunca senti entre os meus dedos, mas se mergulhasse neles, negros, grandes, descobria-lhes o mesmo brilho que me deslumbrou no primeiro dia.
Confidenciámos aventuras, empolámos casos, fizemos a festa como sempre fazíamos, quando na verdade eu queria apenas um afago, descansar no seu ombro, pedir abrigo…
E à chegada da lua despedimo-nos num toque fugidio…

 

(Desta vez queria apenas dar-vos musica… esta musica, mas na voz da Fafá de Belém… não encontrei, portanto como já não era o que queria que fosse, resolvi dar-vos também uma pequena estória, que podia ter esta musica como pano de fundo.)

vem

Vem… sim tu, porque não?!
Vem, apetece-me sussurrar-te ao ouvido, soltar um suspiro, provocar o teu arrepio… apetece-me percorrer o teu corpo com a ponta dos meus dedos, mostrar-te o meu lado felino.
Vem, apetece-me prender-te nos braços, fingir que me acolhes enquanto te meço, enquanto te envolvo na minha teia, te vicio no meu jogo…
Vem… és especial!
És especial o suficiente para te seduzir e… banal que chegue para te abandonar!

o outro lado

Era cedo, tão cedo! Era demasiado cedo para que eu pudesse entender fosse o que fosse. As primeiras horas foi como se o meu corpo estivesse anestesiado. Uma dormência desconfortável, mas indolor.
Observei o mundo sobrevoando a minha cabeça, como espectadora privilegiada daquela peça. A chapa contorcida espalhava-se por largos metros e o sangue que escorria pelas falhas da minha pele, era uma mera pintura oferecida pelos cacos espalhados no chão. Observei-me pequenina, lá em baixo, engolida pela multidão, abafada no som das sirenes, no rodopio terrível de mil vozes na minha cabeça.
Havia um momento em que a vertigem me embrulhava o estômago e as articulações me fraquejavam, mas logo em seguida voltava à minha condição de ausente.
Revia mentalmente a projecção daquele vulto muito acima do asfalto, muito acima de mim. Não o vira. Era tão novo!
Alguém me levou e eu fui.
Ele era tão novo… e eu tive que aprender a sobreviver a isso!

conteúdo

Tou bonita?
Sim.
Gostas? Ficaram giras… redondinhas!
Sim.
Estão lindas.
Pois.
As da X não ficaram tão bem.
Não.
Viste?
E?
Nada, mas as minhas são especiais não são?
Sim… especialmente plásticas!

TITA

Hoje o conto é outro. Vou falar-vos da Tita.
Ela nasceu numa família muito, muito antiga. Uma família simples, modesta e fundamental. Dessa família sempre dependeu toda a humanidade!
Mas… há sempre um mas não é? Nós, humanos, sempre os tomámos como garantidos, sem lhes darmos o devido valor, sem termos com eles a devida precaução, o devido respeito. Considerávamos que por serem uma família numerosa, nunca nos deixariam desamparados por mais tropelias que fizéssemos, e acreditem quando vos digo que fizemos e fazemos muitas!
A família da Tita está em apuros, seremos nós capazes de mudar só um bocadinho para os tentarmos salvar e consequentemente salvarmo-nos?
Hoje, durante a manhã, lembrei-me da Tita enquanto lia um amigo. A Tita, gotita de água. Lembrei-me que ela foi uma grande amiga minha, mas eu, por desleixo e distracção não cuidei dela… deixei-a morrer!
Enfraquecia-a pelo desperdício de torneiras mal fechadas e abertas desnecessariamente, em autoclismos que utilizam o dobro do devido… em banhos exageradamente compridos, em máquinas de lavar sem carga completa!
Envenenei-a aos poucos com a quantidade de lixo que produzia e que não separava para reciclagem… pedi que outros o fizessem ao comprar demasiados produtos agrícolas, daqueles feitos às pressas, ao comprar para estragar, obriguei a que se produzisse mais e pior…
E agora, também por causa de mim, a família da Tita, corre o risco de toda ela morrer. Por causa também do meu desperdício, há cada vez menos Titas… gotitas… preciosas de água!
Eu estou a tentar emendar-me, e vocês?

recordar

Não sei se é da chuva, se é por eu andar meio maluca e nada me sair com jeito, mas hoje apetece-me recordar um texto… é da casa antiga e a maioria de vós já o conhece, desculpem a repetição, mas apetece-me…
De algum modo este texto é dos meus favoritos entre todos os que já escrevi. Pela mensagem que vos quis passar e porque sei que alguns entenderam, pelo rumo que os textos tomaram… um rumo do qual me desviei nos últimos tempos… pelos gritos que se juntaram a este. Relembro-o talvez, por me ter perdido desse rumo… e cá está ele:

Fujo

Os olhos pesam-me, a pintura de vários dias amanhece assim, arroxeada, esborratada… odeio isto!
Os meus dias repetem-se, arrastam-se. Que raio faço aqui?… merda!
Não sei quem é esta que vive no meu corpo, que permite a maquilhagem! Sei que estou escondida em mim, preservando a menina que fui, aquela linda, a dos totós que sonhava com o príncipe! Eu não sou esta que agora aqui mora… não posso ser… recuso-me a ser…
A mão sobe-me até ao rosto, estou demasiado velha… alguém me cortou os cabelos, me tatuou a pele e ela deixou… essa fraca que me ocupou o corpo permitiu. Odeio-a tanto que sou capaz de a matar! Não sei quando fui invadida… sei só que nunca fui conquistada… estive a reunir forças, a traçar estratégias, e hoje vou reaver-me na calada da noite, enquanto dorme… hoje fujo…
A carne dorida que tenho em volta dos ossos, não a conheço… o que recordo são as pernas longas, os braços esguios a barriga lisa… esta coisa dorida que me desforma não é minha, apenas a máscara que alguém me impôs… vou pôr mais betume… desse que disfarça… desse que usei em tempos para me sentir bonita e que agora uso para esbater as novas cores com que me pintam…
Dói-me o corpo, mas a maior lesão foi feita na alma… foi sentir-me usada, ultrajada, destituída de todos os sonhos… não foi a juventude que me roubaram… foram os sonhos da vida que tive antes desta, no tempo em que acreditava nos outros, o tempo em que não sabia o que eram os olhos a baixarem-se à minha passagem… o que me dói é ter ficado invisível… o que me dói é a solidão!
Hoje é o meu ultimo dia aqui… hoje, haja o que houver eu fujo…

simplesmente foi

Viveram infâncias distintas, mas tão iguais. Fizeram as asneiras próprias da idade, deram os seus tombos, e sempre, sempre encontraram a mão de alguém para os amparar. Foram amados pelas suas famílias, amados na dose certa, aquela que permite educar. Ouviram nãos e sins, naturalmente, e isso fê-los crescer saudáveis, dentro das flutuações normais da adolescência.
Viveram os seus primeiros amores, sorriram e choraram e em muitos momentos pensaram que o mundo simplesmente acabaria com o fim dessas relações. Mas não acabou. Ficaram fortes, capazes, certos de quem eram, preparados…
Até que num belo dia em que o frio se fazia notar em cada gota gelada que caía do céu, as suas vidas se cruzaram. Bendito comboio atrasado! Foi um desses “acasos”, esses que têm tantos requisitos que tinha mesmo que acontecer.
Foi a chuva, o frio, a linha alagada, a única cadeira vazia, o olhar quente… foi o que inevitavelmente tinha que ser, porque há coisas maiores que nós, porque há coisas que não podemos prever, porque há coisas das quais não se pode fugir! Simplesmente foi, com a naturalidade da chuva a cair, do apitar do comboio, das pessoas que correm para o apanhar. Foi enquanto as roupas molhadas secavam no corpo e a conversa parecia tão familiar… foi nos dias que se seguiram, nos encontros marcados sem palavras, nos sorrisos palermas… foi, e é, com a naturalidade do que têm que ser!

Hoje deixo-vos esta estória. Porque há histórias assim, como a do Rodrigo e do Diogo… simples… ou deveria haver!

(Durante a manhã, tive alguns problemas com o batráquio… se por um acaso alguém me enviou algum mail (ou comment que não esteja publicado), faça o favor de reenviar!)

longe

Os dias repetem-se esgotantes, num emaranhado que me parece ridículo!
De todos os lados, de todos os rostos, os mesmos horrores, os mesmos olhares vazios, as mesmas palavras desprovidas de significado, os mesmos ecos. Parem! Entontece-me o vosso rodopiar na minha cabeça. Parem já disse! Não consigo nem quero guardar-vos.
Quero lá eu saber desse mundo, esse que não distingo para lá da casca. Quero lá eu saber do seu girar absurdo. Cansa-me ser espectadora de mim mesma, tentando entrar nesse carrossel de nadas que teima em correr. Estou farta de ser projectada para longe de mim… tenho os ossos doridos desta rota de colisão. Nunca sou eu a entrar é sempre uma outra qualquer, consigo ouvi-la ao longe, no exterior da casca, rindo…
Esmagam-lhe o corpo. Sinto os apertos. Solto o que dizem ser um suspiro… e continuo perdida. Alheia aos cheiros, aos sabores… só! Agarram-lhe a mão e guiam-na para lá, lá longe… eu não sei onde é. Pudesse eu recordar os caminhos!
A ladainha repetida, parece falar de outros trilhos… de lugares que preciso descobrir outra vez… sonho que em tempos fui mais que isto, que este arrastar de horas corridas, sonho com tempos em que não estava só… longe de mim!